SPUTNIK

3 dicas poderosas e uma certeza: não desista

Entrevista com Gislaine Lima, diretora global de Atração e Desenvolvimento na Alpargatas.

1681679379722 Copia Gislaine Lima é responsável por atração, seleção e desenho de carreira na multinacional brasileira de 14 mil colaboradores.

Sua trajetória profissional de sucesso começou há 25 anos, quando entrou como atendente na Natura. Mas, na verdade, sua história inspiradora começou muito antes.

Filha de nordestinos que migraram para São Paulo para trabalhar, ela tangibiliza em 3 características pessoais o que é preciso para uma escalada brilhante:

  • Resiliência
  • Protagonismo
  • Humildade com escuta ativa

Nessa entrevista exclusiva à SPUTNiK, Gislaine inspira ao compartilhar suas vivências. E traz exemplos ricos que a fizeram desenvolver com primazia o metaskilling – a habilidade de se qualificar. Fica evidente o ímpeto de intencionalidade e a interdisciplinaridade que ela sempre ativou em sua jornada.

Conversamos numa manhã de maio. Gislaine tinha acabado de voltar de uma visita às fábricas, em que viu, por exemplo, dezenas de colaboradores vestindo a camiseta – literalmente – de uma das obras dela dentro da Alpargatas: a “ALU”, a universidade corporativa que nasceu em 2020. Além disso, Gislaine foi a precursora de diversas outras estruturas em RH na companhia, como o programa de trainee – inclusive o braço internacional.

Em sua fala calma e firme ao mesmo tempo, máximas do mercado de trabalho como “não desista” e “se você quer, tem que lutar” fazem realmente sentido. E dão um gás para que você continue acreditando sempre.

Prepare-se para absorver conhecimentos valiosos! Boa leitura!

Como foi a sua trajetória profissional até aqui, em termos de formação, e o que mais lhe marca ao revisitá-la? 

Vim de uma família bem humilde. Meus pais são nordestinos, vieram para São Paulo para ganhar vida e, desde pequena, sempre entendi o valor da educação. Para mim, educação não é só para o trabalho, tem a ver com a vida. Isso é uma das coisas que mais me conecta com o que eu faço, porque, de fato, acredito no impacto da educação na vida das pessoas.

Cresci em São Paulo, fiz Comunicação Social com ênfase em Relações Públicas e comecei minha carreira na Natura, numa posição de atendimento ao consumidor. Foi uma porta de entrada, muito mais para que eu pudesse pagar minha faculdade e conseguir estudar.

Quando entrei, a Natura era pequena, tinha um escritório em Santo Amaro bem pequeno (hoje, a sede é em um prédio de mais de 33,5 mil m2 no Parque Anhanguera, SP). Fui me candidatando no programa de aproveitamento interno, até que passei a ser secretária. Fui crescendo lá dentro.

 

E nessa dinâmica, como você foi escalando internamente, e como migrou para a área de RH?

Eu nunca desisti. Tentei várias vezes ir para treinamento porque era uma coisa que me chamava a atenção. Fiz um curso técnico em processamento de dados antes da faculdade, dei aula nesse curso e percebi que gostava de ir para a sala de aula. Ao entrar na Natura, quis a área de treinamento. Quando consegui essa migração, para uma posição júnior de indicadores de treinamento, era mais back office, que eu aceitei porque era uma porta de entrada. E fui almejando outras cadeiras. Trabalhei em várias posições, como integração executiva, programas especiais da companhia, e programas funcionais, que têm mais a ver com o exercício da função. Também fiquei um bom tempo cuidando de programas de liderança. Foi ali que pude crescer e me desenvolver muito.

Passei pela área de carreira da Natura e cuidei do “ciclo de gente”, que envolve avaliação de desempenho e sucessão. Cuidei também de um programa chamado de “segunda carreira”, para transição de carreira. Essa  foi a última das últimas posições que ocupei dentro da Natura.

E, então, entendi que era o momento de sair e continuar como gosto de estar: aprendendo e reaprendendo. Entrei na Alpargatas, o que foi para mim uma grata surpresa. Apesar de ser também uma empresa brasileira, e de o mercado, de certa forma, enxergar certa similaridade, é totalmente diferente. Uma coisa é você produzir cosméticos, outra coisa é produzir sandália de borracha. E tem a questão dos anos da empresa, a Alpargatas tem 116, é uma empresa centenária, e isso carrega muita coisa por trás, desafios completamente diferentes. Tanto que eu cheguei na Alpargatas e vi que existia muita oportunidade para implementações. Não tinha uma universidade corporativa, havia ações de treinamentos pontuais. Havia estágio, mas não um programa estruturado pensando em pipeline, para aproveitar os movimentos de carreira. Aí eu me dei conta: é esse lugar em que eu quero estar. Também não tinha programa de mentoria, tive o privilégio de liderar essa agenda aqui dentro, implementei o primeiro programa de trainee da Alpargatas, que hoje já está na quinta turma, e também o trainee internacional. Temos trainees da Ásia, da Europa e Estados Unidos. Temos o programa global e o industrial – este, específico para trabalhar o pipeline da indústria. Para 2024, talvez o trainee se expanda, estamos estudando alguns caminhos.

Desenhamos uma estratégia para que estagiários entrassem no trainee. Isso é muito bacana, ver os resultados do desenvolvimento do estágio. Implementei toda a parte de carreira, hoje a gente tem um people cycle ao longo do ano, que começa com avaliação comportamental – que tem a ver com a nossa cultura -, vai para o Talent Review, onde podemos discutir as carreiras, e depois mapear a sucessão. Também lançamos esse ano o EVP novo da Alpargatas, com ações de employer branding para atração e seleção.

Em 2020, criamos a primeira universidade corporativa da Alpargatas, a “ALU”. Ela nasceu no meio da pandemia, todo mundo dentro de casa e eu pensei “vamos criar uma universidade porque é a melhor forma de conectar as pessoas ao autodesenvolvimento”. A partir daí, disponibilizamos diversos conteúdos, gravados e ao vivo. Com o tempo, essas ofertas se expandiram e hoje temos ações diversas, presenciais, híbridas, gravadas, online. Já no ano seguinte, lançamos a nossa plataforma de streaming, a “ALUFLIX”, para ofertar treinamentos em formato de webséries. A plataforma foi desenvolvida do zero, para nós, e hoje nossos colaboradores podem assistir a uma minissérie de liderança, por exemplo, de 10 episódios, de 5 ou 10 minutos. Priorizamos conteúdos em doses menores para que a pessoa consiga escolher e maratonar quando quiser. E o melhor: esses conteúdos chegam para todos, da equipe de vendas à fábrica.

Além disso tudo, temos programas de liderança, de expertise – que são mais funcionais -, de ferramentas de gestão, e programas relacionados ao nosso futuro, com os nossos pilares Global, Digital, Inovação e Sustentabilidade.

E vou até dar um “spoiler”: este ano, em parceria com a Ioasys (empresa de tecnologia da Alpargatas), vamos lançar o app da ALUFLIX, que vai possibilitar que os colaboradores baixem esses conteúdos e assistam quando quiserem.

Ao trabalhar com a área de People, você trata diretamente da carreira das pessoas, e seus anseios de crescimento e desenvolvimento. Ao mesmo tempo, você também é uma profissional cuidando da sua própria carreira. Nesse sentido, trabalhar em RH é um convite maior à empatia, porque – como você relata na sua trajetória – como indivíduo, você também viveu os “perrengues” da carreira, o sentimento de “injustiça” que, por vezes, acontece ao não se conseguir uma promoção, por exemplo, ou a dificuldade em não encontrar na empresa recursos para o autodesenvolvimento. Que paralelos você faz da sua própria escalada, e como você consegue disseminar isso para tantas pessoas?

Eu tive realmente que lutar muito para crescer e conquistar meus espaços. Na Natura, entrei como atendente, passei para secretária e depois fui para a posição que eu queria de verdade (área de treinamento). Esse caminho é um convite à resiliência, um convite a acreditar. E quando você acredita em algo, você precisa acreditar primeiro em você, e se preparar muito. Não pode desistir no primeiro problema ou dificuldade.

Venho de uma história de 17 anos de Natura e hoje completando 8 de Alpargatas. Isso significa que não sou uma pessoa com baixa resiliência. Pelo contrário. Pessoas que estão há mais tempo nas empresas precisam ter paciência em dobro, porque têm que esperar as oportunidades acontecerem. Mas, por outro lado, você também acompanha o crescimento da empresa e não tem nada mais prazeroso do que crescer junto com ela. Tive muitos motivos para desistir no meio do caminho, para falar “deixa pra lá, vou continuar como secretária ou vou sair e buscar outras coisas”, mas não. Quis continuar, sempre com meu foco em mente, de entrar para a área de treinamento.

Antes de sentar nessa cadeira, recebi alguns nãos. Outras pessoas foram escolhidas na minha frente. Hoje eu entendo. Quando você recebe um não, é porque realmente não está tão preparado quanto outra pessoa está – seja por qual for o motivo. Não sei quais eram os motivos àquela época, mas hoje eu tenho certeza que a liderança que não me escolheu estava optando pela pessoa certa, para o lugar certo, no momento certo.

E quais são as ferramentas que podemos ativar para entender isso de fato e lidar bem com essas situações?

A primeira coisa que falo para jovens, para lideranças, e para todo mundo que estou impactando de alguma maneira é: precisamos ter muita resiliência, nos preparar e ter obstinação. Se você quer, tem que lutar.

A segunda é protagonismo. Você não pode, de forma alguma, responsabilizar a organização pelo seu crescimento. Isso é uma responsabilidade sua, não é da organização. A empresa tem cadeiras, tem oportunidades, mas quem escreve a história de carreira é você. Você tem toda a condição de fazer escolhas ao longo da sua jornada e de ser protagonista dela. Se eu ouço “mas não consigo”, eu respondo: você já avaliou o que pode estar faltando? Você precisa correr atrás, se desenvolver, falar com quem precisa falar. Alguma coisa está acontecendo, então, investigue melhor, mas não terceirize essa responsabilidade. Tenho muito orgulho de dizer que, quando era secretária, era membro da CIPA, era brigadista, fazia mil coisas, sempre falava “cabe mais”. A Natura tinha um programa de revendedores dos produtos (venda direta) também para colaboradores, assim como tem as consultoras, e fui destaque durante muitos anos como primeiro lugar em vendas, andava com o carro cheio de produtos.

 

O terceiro conselho é humildade e escuta ativa. Se alguém está dizendo que está faltando alguma coisa é porque você está passando essa mensagem. E falta escuta para você identificar isso. Por mais que não concorde ou não perceba, alguém percebe. Então, busque ouvir outras pessoas, aprofunde o seu conhecimento e vá trabalhando essa questão.

Entrei na Alpargatas como gerente de carreira e educação. E fui promovida ao lançar a universidade. Isso não estava entre as minhas metas, mas eu quis lançar. Não tinha recurso, mas vi que era a hora, e ela nasceu pequena – e aqui tem outra questão: existe uma certa angústia de sempre lançar coisas grandes, né? Mas não é o único caminho. Você pilota uma coisa pequena, e ela vai ganhando proporção ao longo dos anos.

Eu sabia que a ALU ia nascer pequena em relação ao que eu queria para ela. Mas a gente tem que acreditar e fazer acontecer. Acabei de chegar da visita às fábricas e é muito, muito recompensador ver as pessoas usando a camiseta da universidade, falando nela. É fazer com que isso chegue lá. Mas as pessoas precisam ver valor, e a gente está construindo essa história.

Como você acha que as pessoas enxergam o valor da aprendizagem corporativa? E quais são os cursos que mais fazem sucesso na ALU?

Os cursos de maior sucesso são aqueles em que as pessoas se engajam através do famoso “boca a boca”. Por mais que a gente faça propaganda e incentive, o impacto maior é quando um participante diz aos colegas que valeu a pena investir tempo naquele treinamento. Ano passado, fizemos o Oscar da ALU, com os melhores treinamentos. E um deles é o programa de liderança, para todos os níveis, desde a preparação até C level. É um conteúdo muito prático, quem ministra somos nós mesmos, eu e meu time falamos sobre carreira, o time que cuida de cultura (organizacional) fala sobre a sua área, o time de metas e sistemas de gestão fala de resultado, a líder que cuida de diversidade também fala sobre o seu tema, e assim a gente construiu um treinamento complexo, com pessoas internas donas dos temas. É um privilégio ouvir diretamente das pessoas como elas sentem o que a gente desenha, como área especialista, na prática, se está funcionando, o que não está, o que percebem de gap.

E sobre como as pessoas enxergam valor, acredito que é quando conseguem colocar em prática o que aprendem. Treinamento que você conclui e não sabe onde aplicar não gera valor. Você pode ter tido um insight, que é um valor para algumas pessoas, mas todo mundo está muito sedento para aplicar o que aprende na prática. Como eu faço para sair dali com aquela caixa de ferramenta e usar no meu dia a dia? É o maior desafio do treinamento, como transformar conteúdo em prática.

Por exemplo, viés inconsciente. Como explicá-lo na prática? Em nosso treinamento de liderança, temos um módulo sobre como fazemos processo seletivo. E temos um roleplay de entrevistas, colocamos situações para os participantes vivenciarem. Como lidar com um candidato que fala bastante, ou que é mais tímido? Como extrair do entrevistado o que você precisa? Os participantes exercitam esses exemplos, e ouvem histórias e dicas que compartilhamos, de situações que conduzimos. Um desligamento, que nunca é fácil, ou um feedback difícil de dar.

Também temos um treinamento de Belt, unido com os projetos na prática. Só entra nesse treinamento quem tem um projeto para entregar usando a metodologia de Green Belt e Black Belt. E tem fóruns de acompanhamento em que as pessoas apresentam a evolução da utilização das ferramentas e o resultado dos seus projetos. Assim, o treinamento não termina na sala. Ele continua e esse é o maior desafio, é isso que gera valor.

Você falou sobre feedback difícil e entrevistas desafiadoras. São algumas das principais dores do RH, historicamente. Com um olhar retroativo sobre os seus 25 anos de profissão, você observa que essas dores amenizaram no mercado de trabalho?

A conversa entre líder e liderado continua sendo uma dor. Na Natura, onde eu cresci muito, saí de lá como gerente sênior, eu tinha promoção praticamente todo ano. Em um determinado ano, ouvi da minha diretoria que iriam esperar que eu me consolidasse melhor na cadeira em que estava. Ela disse: ao dar um salto maior, você precisa aprender, porque pode cair. É melhor que você se prepare, treine e dê passos firmes. À época não entendi muito bem, pensei “vou perder um ano, deveria estar crescendo”. Hoje eu entendo completamente o que ela falou. Eu precisava de mais tempo para estar pronta de verdade para um próximo salto. Mas a gente nem sempre quer ouvir isso, quer só ouvir notícias boas. Mas tem que se encorajar e ter conversas difíceis, honestas, verdadeiras porque, com certeza, vai ser o maior reconhecimento que a gente vai dar àquela pessoa.

Aqui na Alpargatas, estamos começando o Talent Review, com seis boxes, mas não é só colocar a pessoa num box e nada mudar. Passa um ano e a pessoa continua na mesma plotagem, fazendo a mesma coisa, sem desafio. E aí você pode até gerar uma frustração. Então, é preciso realmente dar oportunidade e acelerar a carreira dela, dar sinais claros de que ela tem estrada para abrir.

E, para isso, você tem que fazer escolhas, tem um exercício de meritocracia, porque não consigo acelerar 100% da população, não tenho cadeira para todos. Temos que fazer algumas apostas.

Ainda existe, de forma geral, uma cultura de querer agradar e dar notícia boa sempre. Mas as pessoas estão sedentas por conversas verdadeiras e transparentes. Ao mesmo tempo, é difícil você ouvir de um líder que você não está pronto. Todo mundo quer crescer e ser promovido, mas às vezes é necessário você poder dar o próximo passo de forma mais firme, mais consistente.

Isso que você traz se relaciona com uma habilidade para se qualificar, que abordamos em nosso report de tendências como metaskilling. O conceito é: não basta só se qualificar. É preciso saber como fazer isso da melhor forma, no caminho mais assertivo, com absorção de conhecimentos e aplicação consistente deles. Como você acredita que o metaskilling pode ser desenvovido?

Quando entrei no RH, fiz pós em Administração de Recursos Humanos. E aí depois vi que precisava sair um pouco desse tema, porque já estava imersa. Precisava buscar outros conhecimentos. E, então, fiz um MBA em ciência do consumo. Eram só profissionais de marketing na turma e apenas eu de RH. Achei o máximo, queria entender outras áreas e ver como poderia trazer esse conhecimento da ciência do consumo para a minha função. Foi incrível, usei muita coisa.

Então, abra caixinhas diferentes, faça conexões e amplie o seu conhecimento. Não precisa se especializar demais em um determinado conhecimento, às vezes outros conhecimentos completamente diferentes podem complementar o seu olhar, e dar uma visão mais ampla das possibilidades que você pode navegar. Recomendo também fazer rotação de áreas, e percorrer aquelas em que você jamais trabalharia. Que seja por três meses, você vai aprender um mundo completamente diferente. Precisamos buscar incansavelmente o autoconhecimento com caixas de ferramentas diferentes.

O presente das empresas do futuro